Dia 19 de maio é o dia do físico, uma data que, apesar de tudo, não tem relevância nenhuma para a sociedade brasileira. É apenas mais um daqueles dias “dia-homenagem” que existem aos montes por ai. E para ajudar é bem no mês das mães, ai não dá para competir.
Um dia muito mais interessante foi o 14 de março, que foi o dia de falar como um físico...
Ok, isto é ainda menos relevante.
Mas o interessante deste dia é reparar que a profissão de físico, como toda outra profissão, tem todo um conjunto de palavras próprias (seu jargão) que a torna praticamente incompreensível para as outras pessoas. Todo trabalho de divulgação científica é, de certa maneira, uma tentativa de explicar ciência a alguém sem se valer do uso do jargão próprio. E esta é uma tarefa ingrata.
Digo isto por que muitas vezes o cerne do problema está justamente no entendimento correto de uma palavra, e sem tal entendimento temos que nos valer de dúzias de linhas descrevendo analogias que tentem transmitir a idéia resumida em único termo (uma tarefa não-trivial eu diria). É claro que isto não é um problema apenas dos cientistas. Tente contar como foi o ultimo jogo do seu time predileto sem utilizar as palavras escanteio, pênalti e impedimento. Será que você consegue?
A questão é que tem pessoas que levam o uso do jargão a pontos extremos. No caso dos físicos, o uso indiscriminado do jargão é um dos motivos que fazem com que as pessoas ao nosso redor nos achem completamente loucos (um outro motivo seria o fato de sermos, realmente, completamente loucos).
Existe um texto do Luiz Fernando Veríssimo que ilustra bem o uso desenfreado do jargão, e, como todo texto deste autor, é varias ordens de grandezas melhor que o meu, então resolvi posta-lo aqui no blog.
Mas antes deste texto aqui vai um pequeno dicionário do jargão físico que usei nesta postagem.
-infinitesimal: Muito pequeno, próximo à zero
-não-trivial: difícil
-Ordens de grandeza: cada ordem de grandeza significa que algo é dez vezes maior (ou menor) do que outra com a qual está sendo comparada.
Aqui vai o texto.
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O Jargão
Nenhuma figura é tão fascinante quanto o Falso Entendido. É o cara que não sabe nada de nada mas sabe o jargão. E passa por autoridade no assunto. Um refinamento ainda maior da espécie é o tipo que não sabe nem o jargão. Mas inventa.
- Ó Matias, você que entende de mercado de capitais...
- Nem tanto, nem tanto...
(Uma das características do Falso Entendido é a falsa modéstia.)
- Você, no momento, aconselharia que tipo de aplicação?
- Bom. Depende do yield pretendido, do throwback e do ciclo refratário. Na faixa de papéis top market - ou o que nós chamamos de topi-marque -, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o release, entende?
- Francamente, não.
E o Falso Entendido sorri com tristeza e abre os braços como quem diz "É difícil conversar com leigos...".
Uma variação do Falso Entendido é o sujeito que sempre parece saber mais do que ele pode dizer. A conversa é sobre política, os boatos cruzam os ares, mas ele mantém um discreto silêncio. Até que alguém pede a sua opinião e ele pensa muito antes de se decidir a responder:
- Há muito mais coisa por trás disso do que vocês pensam...
Ou então, e esta é mortal:
- Não é tão simples assim...
Faz-se aquele silêncio que precede as grandes revelações, mas o falso informado não diz nada. Fica subentendido que ele está protegendo as suas fontes em Brasília.
E há o falso que interpreta. Para ele tudo o que acontece deve ser posto na perspectiva de vastas transformações históricas que só ele está sacando.
- O avanço do socialismo na Europa ocorre em proporção direta ao declínio no uso de gordura animal nos países do Mercado Comum. Só não vê quem não quer.
E se alguém quer mais detalhes sobre a sua insólita teoria ele vê a pergunta como manifestação de uma hostilidade bastante significativa a interpretações não ortodoxas, e passa a interpretar os motivos de quem o questiona, invocando a Igreja medieval, os grandes hereges da história, e vocês sabiam que toda a Reforma se explica a partir da prisão de ventre de Lutero?
Mas o jargão é uma tentação. Eu, por exemplo, sou fascinado pela linguagem náutica, embora minha experiência no mar se resuma a algumas passagens em transatlânticos onde a única linguagem técnica que você precisa saber é "Que horas servem o bufê?". Nunca pisei num veleiro e se pisasse seria para dar vexame na primeira onda. Eu enjôo em escada rolante. Mas, na minha imaginação, sou um marinheiro de todos os calados. Senhor de ventos e de velas e, principalmente, dos especialíssimos nomes da equipagem.
Me imagino no leme do meu grande veleiro, dando ordens à tripulação:
- Recolher a traquineta!
- Largar a vela bimbão, não podemos perder esse Vizeu.
O Vizeu é um vento que nasce na costa ocidental da África e volta nas Malvinas e nos ataca a bombordo, cheirando a especiarias, carcaças de baleia e, estranhamente, a uma professora que eu tive no primário.
- Quebrar o lume da alcatra e baixar a falcatrua!
- Cuidado com a sanfona de Abelardo!
A sanfona é um perigoso fenômeno que ocorre na vela parada em certas condições atmosféricas e que, se não contido a tempo, pode decapitar o piloto. Até hoje não encontraram a cabeça do comodoro Abelardo.
- Cruzar a spínola! Domar a espátula! Montar a sirigaita! Tudo a macambúzio e dois quartos de trela senão afundamos, e o capitão é o primeiro a pular.
Luis Fernando Veríssimo- As Mentiras que os Homens Contam
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P.S. Não sei se vocês acharam a mesma graça que eu, afinal o humor depende do referencial adotado.
É isso ai...